quarta-feira, 6 de abril de 2011

Uma vez consumidor, sempre consumidor. Do nascimento à morte, ainda que tenha morrido logo ao nascer


Sebastião Nunes

Publicado no Jornal OTEMPO



FOTO: Intervenção sobre mapa-múndi antigo (Willem Blaeu, século XVI)

Hoje, no início do século XXII, o mapa terrestre está assim, depois das grandes catástrofes mundiais
Intervenção sobre mapa-múndi antigo (Willem Blaeu, século XVI)
Hoje, no início do século XXII, o mapa terrestre está assim, depois das grandes catástrofes mundiais





Estamos em 2111. Os descendentes dos mamíferos de rabo curto chegaram a 60 bilhões. Cresceram e se multiplicaram loucamente, bem acima do previsto (e talvez sonhado) pelo Criador. Em compensação, praticamente todos os outros mamíferos foram extintos. Restam - fazendo de conta que existem - punhados de casais de bichos em zoológicos. Leões, macacos, cachorros, ratos, pacas e coelhos seguiram o exemplo dos dinossauros e de aproximadamente 99% de todas as espécies criadas pela natureza desde o pipocar da vida: sumiram do mapa. Os insetos deram certo. Só de baratas existem 360 trilhões. Os camundongos passam de 240 trilhões. Como sei? É que todos os seres vivos estão registrados no Grande Catálogo Mundial de Viventes, organizado, supervisionado e constantemente atualizado pela Unesco. Assim, existem 6.000 baratas para cada um de nós. E 4.000 camundongos. Mas, como sabemos desde os primeiros tempos, quantidade não é qualidade. E vice-versa.



SOCIOLOGIA INão existem mais indivíduos, pessoas, homens, mulheres, crianças ou seres humanos. Agora só existem consumidores. Cada um possui seu próprio identificador, começando com 000.000.000.000.001 e terminando em 000.080.000.022.222, por enquanto. O número 001 acima se refere ao primeiro consumidor a ser cadastrado. Claro que está morto há anos (seu registro foi realizado em 2022, ano da instituição do GCMV, sigla do Catálogo). O último, 000.080.000.033.333, está na tela do computador neste exato momento (canto inferior direito, acima do relógio).

Note que durante a digitação deste texto, e de algumas linhas apenas, o número de consumidores nascidos e registrados aumentou de 22.222 para 33.333, ou seja, nasceram neste brevíssimo lapso de tempo 11.111 novos consumidores. Fantástico, não é mesmo? A visualização é em tempo real, uma das maravilhas da tecnologia moderna. Aliás, tudo agora é em tempo real. Ao vivo e em cores.

Deve-se também notar que escrevi 60 bilhões de descendentes logo no início, e no Catálogo aparecem 80 bilhões, mas é que entre 2022 e 2111 morreram 20 bilhões de consumidores. Esta é uma das grandes vantagens do Catálogo: nenhum consumidor é apagado ou substituído. Uma vez consumidor, sempre consumidor. Do nascimento à morte, ainda que tenha morrido logo ao nascer, pois se tiver mamado uma única gota de leite materno será automaticamente inserido no Catálogo. Ficam de fora apenas os abortados e natimortos, considerados consumidores de segunda classe, já que se alimentaram, passivamente, das reservas maternas.

SOCIOLOGIA II
Depois de instituída a categoria Consumidor para designar os descendentes dos mamíferos de rabo curto, aconteceram plebiscitos em todo o planeta para decidir se outros seres vivos mereceriam o título. A conclusão coletiva, por larga maioria de votos, referendada no Conselho de Segurança da ONU e aprovada pela Assembleia Geral, foi que não, não mereciam, por se tratarem eles também, a exemplo de abortados e natimortos, de consumidores passivos. Assim, somente nós, gloriosos descendentes conscientes de heroicos antepassados, merecemos o honroso título de Consumidor.

Por quê? Muito simplesmente porque, conforme arengou o Secretário-Geral da ONU em seu discurso de confirmação da nova ordem mundial, "só quem consome ativamente, com voracidade, persistência e tenacidade, merece o título sublime de Consumidor". E disse mais: "É preciso estar consciente e, mais do que consciente, orgulhoso de seu papel de transformador insaciável de bens em lixo, para merecer o título. Pois é da transformação que nasce a riqueza, e é através do acúmulo de lixo que se prova o consumo". Aplaudido com entusiasmo, concluiu: "É ao Consumidor, isto é, a todos e a cada um de nós, que pertence a Terra, com tudo o que nela existe".

SOCIOLOGIA III
Ao contrário de nós, ilustres consumidores, todos os outros seres vivos são denominados Predadores, pelo fato de não serem conscientes de seus atos. Alimentam-se porque morreriam sem comer, mas não o fazem em plena consciência e apenas porque é necessário. Essa é a diferença básica entre Consumidor e Predador, como ensinam todos os livros escolares, da pré-escola à universidade.

Nestes últimos cem anos, ou melhor, nestes últimos 160 anos, se considerarmos que a verdadeira Sociedade dos Consumidores Conspícuos (SCC) nasceu mais ou menos em 1950, com o advento portentoso da Sociedade de Massas, da Cultura de Massas e mesmo da Destruição em Massa, a voracidade humana não teve limites. Todos foram incentivados, permanentemente e por todos os governos do mundo, a fazerem uso, como resumiu o primeiro-ministro inglês "de todo o seu potencial de consumo durante o máximo de tempo possível".
 Com isso queria dizer, e todos compreenderam muito bem, que o bem maior é consumir ao máximo e em todas as situações possíveis, de modo a gastar e destruir rapidamente os bens adquiridos, capacitando-nos assim a comprar outros bens, mais sofisticados, mais modernos, de última geração e, quase com certeza, menos duráveis.

CONCLUSÃO PRELIMINAR
O mundo é hoje um gigantesco shopping. Todas as coisas se tornaram itens de compra, venda, consumo, desgaste e destruição. Aquilo que no princípio do século XX durava 20 anos, passou a durar 20 dias, para alegria geral. Ou 20 minutos.

"Viver é Consumir", diz um dos mais bem-sucedidos slogans de nosso tempo. Como corolário desta extraordinária proposição, surgiu outro slogan: "Consumir é Destruir", que se tornou quase imediatamente palavra de ordem.

Como veremos a seguir, tudo mudou no planeta. Geografia, religião, política, cultura, ciência - nada permaneceu como era, uma vez que todas as atividades humanas foram direcionadas para o consumo e, em consequência, para a destruição.

No ano de 2111, a Humanidade chegou, finalmente, ao início do futuro.
O escritor SEBASTIÃO NUNES escreve no Magazine aos domingos.
http://www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=14758

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